sábado, 7 de abril de 2012

Um trecho do livro de presente para quem não comeu carne na Páscoa


O mundo a ser devorado

No adulto, a alimentação é um dos poucos atos que mobilizam quatro dos cinco sentidos: visão, tato, olfato e paladar. E até mesmo o quinto – a audição – pode entrar na brincadeira se considerarmos o batuque que nossos dentes produzem ao esmagar nozes, legumes quase crus, talos de aipo, grãos etc.
Quando comemos, a boca experimenta uma algazarra polissensorial. Uma farra. Um carnaval cujo carro alegórico mais imponente é representado pelo olfato, que responde por 80% do sabor da comida.
Além da boca, nenhum outro órgão do corpo é tão capaz de absorver sensações diversas e combiná-las de maneira tão irresistível desde o momento de nosso nascimento.
Assim que saímos do útero, o mundo inteiro cabe num bico de seio e o bico do seio cabe na nossa boca.  O bebê come o mundo. Dali vêm cheiros, sensações, gostos que ele imediatamente associa à saciedade – que é tudo o que entende da vida até então.
Depois, quando crescemos, algumas – como o tato – vão se amortecendo.
Imagino que a natureza tenha tido suas razões para refrear o prazer das sensações táteis da boca em crescimento e suspeito que uma delas sejam os dentes. Seria difícil conviver com eles se a cavidade bucal continuasse a ser ultrassensível.
Quando deixamos de ser bebês, o tato da boca passa a trabalhar em segundo plano. Desde que ficamos grandinhos, nunca mais chupamos a ponta do tapete, não lambemos mais o chaveiro que os pais esqueceram sobre a mesinha, não mastigamos a mecha do cabelo que a mãe deixou cair, displicente, sobre os ombros.
Conhecer o mundo pela boca é coisa de quando ainda éramos banguelas.
Com a chegada das presas, passamos a desconfiar.
Ainda bem.
Não temos mais papai e mamãe por perto para avisar que a tomada não deve ser experimentada com a língua. Ao ganharmos dentes, ganhamos também mais paladar, mais olfato, mais visão e mais discernimento. Agora, preferimos bife à milanesa à ponta do rabo do gato – mesmo que a segunda alternativa possa ser tão mais divertida. O tato migra para outras áreas e só permanece na boca como alarme ou prazer secundário.
É natural que seja assim.
Só o que subverte o planejamento tátil da natureza é o beijo.
O beijo chega à boca adulta como um amante ao casamento desgastado.
É um intruso desejado. Não era para estar ali. Sua presença desorganiza, grita que é possível tornar tudo melhor, muito melhor, desde que estejamos dispostos a resgatar alegrias  abandonadas pelo meio do caminho. Como quando ainda não tínhamos dentes e achávamos que o objeto de nosso desejo era comestível.
Mais do que devolver o tato à boca, o beijo o faz reviver como sentido primeiro. A boca tátil é tenra, desprotegida, destemida e curiosa. Ao se aproximar de outra semelhante, precisa compreender quem é aquela que provoca tão intensa emoção.
Igualmente entregue, igualmente desprotegida, igualmente destemida, a outra boca devolve a pergunta. Então, as duas precisam beijar de novo para não compreender ainda mais. Para ficarem úmidas de questões não respondidas, aquecidas de expectativas.
Quando beijo Fugu, encho minha boca de indagações e faço delas alimento.